Gérson Werlang, professor nas áreas de Música e Letras na UFSM, é autor de Wilde em Berneval . A novela tem como protagonista o dramaturgo e romancista irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Registro minha acolhida ao projeto literário do Gérson.
Gérson Werlang leitor de Oscar Wilde
“Sofrer é um instante de longa duração”. A sentença que abre De Profundis (1897), longa e emocional epístola épica dirigida por Oscar Wilde ao amante Alfred Douglas, escrita em Reading, onde cumpria pena de prisão por comportamento indecente e sodomia, é motivo recorrente em Wilde em Berneval. Gérson Werlang, sob a forma de diário/cartas, apresenta registros supostamente feitos por Wilde na circunstância de sua instalação algo incógnita, por alguns meses, na Normandia francesa, após saída da prisão.
Como informa um prefácio – ficcional tal como as cartas – assinado pelo editor Robert Ross, trata-se de cartas que teriam, a exemplo do De Profundis, o endereço de Alfred Douglas (a leitura das “cartas”, em vários momentos, confirma a informação). No decorrer da trama, ou melhor, antes mesmo desta começar, considerando o dito prefácio, notamos o jogo ficção-realidade sustentado por Gérson, na medida em que este se apropria de experiências biográficas de Wilde (a prisão, a ruína, o amante, os detratores, etc.) – e busca reproduzir o estilo de sua escrita – para elaborar a versão do sujeito histórico sobre fatos imediatamente antecedentes com que se envolveu, bem como, suas opiniões sobre o conservadorismo vitoriano e a questão dos costumes de época.
Recém-saído da cadeia, o narrador-personagem, no transcurso do relato, percebe sua existência em torno dessa experiência traumática através do receio de extravasar sensações, emoções e pensamentos, a ponto de estabelecer um jogo arquitetado entre uma existência de disfarce e a visível – e mal disfarçada – percepção de sua verdadeira identidade por aqueles que o cercam.
Gerson Werlang, escritor e músico, professor da UFSM, autor de Outros outonos (1997) – poemas -, brinda-nos com prosa madura que se desincumbe do desafio de operar as teias do discurso na frágil passagem entre “o eu e o outro”, num diálogo com uma tradição que, de Cervantes a Fernando Pessoa, ultrapassa eras e gêneros literários através da exploração dos duplos e dos engenhos de cartas, diários, escritos apócrifos – todos usados como estratagema de ficcionalidade – por assim dizer, dobrando a aposta nas potencialidades da mimese como recurso de invenção.
Em Vale quanto pesa, de 1982, Silviano Santiago afirma que Roland Barthes, “ao perceber o equívoco que cometia com a sua ‘análise estrutural da narrativa’, descobre que toda leitura individual é uma escrita” (p. 165). Aqui, como em outras passagens de tradição poética, reforça-se o princípio de que a ficcionalidade de um texto arma-se por um jogo de ambiguidades. Nas palavras de Wolfgang Iser, em “A interação do texto com o leitor” (apud COSTA LIMA, 1979) “o que se cala impulsiona o ato de constituição, ao mesmo tempo em que este estímulo para a produtividade é controlado pelo que foi dito, que muda, de sua parte, quando se revela o que fora calado” (p. 90).
Ler pelo avesso. Eis o cruzamento entre Oscar Wilde e Gérson Werlang. Este, enquanto “transgressor” do discurso memorialista daquele, aposta na força da escrita como motriz do “conflito da leitura” e potencializa o código da ficção sempre aberto ao conhecimento de outras realidades. Werlang, por meio do testemunho de fingida autobiografia, espreita, na corda bamba entre o ficto e o facto, o “leitor guardião de memórias”, ao tempo em que lhe dá as coordenadas para uma leitura não mais pragmática e unívoca, empecilho à recepção, e o convida a uma compreensão plurívoca e participativa, em que se possam conjugar prazer e atenção crítica numa interpretação reflexiva, bastando, para tanto, conjugar, como faz, memória e imaginação.
Wilde em Berneval, recortes de vida na conjunção de acontecimento e fingimento. Aposta criativa nas imensas possibilidades da literatura. E da leitura. Méritos para o Gérson. Satisfação para nós, leitores.